quinta-feira, dezembro 16, 2004

os dias absurdos

o artista deve pôr em ordem a sua vida.
Os meus actos diários têm este rigoroso horário:
Levantar: às 7.18 h; inspirado: das 10.23 h às 11.47 h. Começo a almoçar às 12.11 h e saio da mesa às 12.14 h.
Saudável passeio a cavalo no fundo do meu parque: das 13.19 h às 14.53 h. Outra inspiração das 15.12 h às 16.07h.
Ocupações várias (esgrima, reflexões, imobilidade, visitas, contemplação, destreza, natação, etc.) das 16.21 h às 18.47 h.
O jantar é servido às 19.16 h e termina às 19.20 h. Das 20.09 h às 21.59 h chega a altura das leituras sinfónicas em voz alta.
Deito-me regularmente às 22.37 h. Hebdomanariamente (às terças), um despertar em sobressalto às 3.19 h.
Só como alimentos brancos: ovos, açúcar, ossos ralados; gordura de animais mortos; vitela, sal, nozes de coco, frango cozido em vinho branco; bolor de fruta, arroz, nabos; rolinhos de naftalina, massas, queijo (branco), salada de algodão e certos peixes (sem a pele).
O vinho, mando-o ferver e bebo-o frio com sumo de fúchsia. Tenho apetite; mas enquanto como não falo, com medo de me engasgar.
Respiro com cuidado (pouco de cada vez). Muito raramente danço. Quando me desloco, apoio-me numa camisa de onze varas e olho fixamente para trás.
Quando rio, o meu ar muito sério não é de propósito; peço sempre, com ar afável, que mo desculpem.
Só durmo com um olho; e tenho um sono muito duro numa cama que uso redonda, com um buraco para enfiar a cabeça. De hora a hora, um criado tira-me a temperatura e dá-me outra.
Sou, desde há muito, assinante de um jornal de modas. Uso boné branco, meias brancas, colete branco.
O meu médico disse-me sempre para eu fumar. E a tal conselho, acrescenta:
- O meu amigo fume; se não o fizer, outro fumará por si.

(erik satie, memória de um amnésico)

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