Nada mudou. O corpo faz doer, tem que comer, que respirar e que dormir, tem a pele fina e o sangue logo em baixo, provisão farta de dentes e de unhas, ossos que quebram, articulações que esticam. Nas torturas tudo isto é tido em conta.
Nada mudou. O corpo treme como tremeu antes e após a fundação de Roma, no século XX antes de Cristo e depois, torturas há, como antes houve, apenas a terra diminuiu, e o que quer que se passe é como se passasse ali à esquina.
Nada mudou. Há só mais gente. às velhas culpas novas se juntaram, reais, insinuadas, fugazes e nenhumas, mas o grito com que o corpo lhes responde, é, foi e será um grito de inocência, numa escala e num registo eternos.
Nada mudou. talvez só as maneiras, a dança, as cerimónias. O gesto da mão protegendo a cabeça permanece o mesmo todavia. O corpo enrosca-se, arranha-se e arranca-se, cai das pernas cortadas, encolhe os joelhos, arroxeia, incha, baba-se e sangra.
Nada mudou. Fora o curso do rio, a linha das florestas, da costa, desertos e glaciares. Entre paisagens assim se desfia a alma, desaparece e volta, aproxima-se e parte, estranha para si própria, inabarcável, certa uma vez e logo incerta de existir, enquanto o corpo está, está e está e não tem lugar para onde ir.
Não digo: isso foi ontem. Com insignificantes trocos de Verão nos bolsos, estamos de novo deitados sobre o joio do sarcasmo, nas manobras de Outono do tempo. E a nós não nos é dada, como aos pássaros, a retirada para o sul. À noite passam por nós traineiras e gôndolas, e por vezes atinge-me um estilhaço de mármore impregnado de sonho, onde a beleza me torna vulnerável, nos olhos.
Leio nos jornais muitas notícias - do frio e suas consequências, de imprudentes e mortos, de exilados, assassinos e miríades de blocos de gelo, mas pouca coisa que me dê prazer. E porque havia de dar? Ao pedinte que vem ao meio-dia fecho-lhe a porta na cara, porque há paz e podemos evitar essas cenas, mas não o triste cair das folhas à chuva.
Vamos viajar! debaixo de ciprestes ou de palmeiras ou nos laranjais, vamos contemplar a preços reduzidos inigualáveis pores-de-sol! Vamos esquecer as cartas ao dia de ontem, não respondidas! O tempo faz milagres. Mas se chegar quando não nos convém, com o bater da culpa - não estamos em casa. Na cave do coração, desperto, encontro-me de novo sobre o joio do sarcasmo, nas manobras de Outono do tempo.
podem mergulhar neste tumulto dos sentidos e do sentir a partir de dia oito de fevereiro no teatro Helena Sá e Costa * encenação e dramaturgia: Fernando Moreira interpretação: Gilberto Oliveira, Inês Mariana Moitas, Joana Figueiroa, José Nunes, Sara Costa, Sara Pinto Pereira
2004 Meses y días son perpetuos transeúntes, los años que se relevan son igualmente viajeros. Aquel que boga durante toda su vida (...) del viaje hace su hogar. Y yo mismo, desde hace no sé qué año, como jirón de nube que cede a la invitación del viento, no había cesado de albergar pensamientos vagabundos y había ido errante por las riberas marinas... citação do poeta japonês Basho / una vuelta por mi cárcel / marguerite yourcenar