quinta-feira, junho 30, 2005

tactear para ver no escuro II


Saía do escuro desfiladeiro. Em boa verdade, já por várias vezes de lá saíra. E havia de sair ainda. Os tratados consagrados à aventura do espírito enganavam-se ao atribuírem a essa aventura sucessivas fases: tudo se confundia, pelo contrário, tudo estava sujeito a ser infinitamente repisado, repetido. A demanda do espírito processava-se em círculo. Dantes, em Basileia, e em vários outros lugares, passara por idêntica escuridão. As mesmas verdades haviam sido reaprendidas várias vezes. Mas a experiência era cumulativa: o passo, com o tempo, tornava-se cada vez mais seguro; o olhar ganhava mais alcance no meio de certas trevas; o espírito constatava, pelo menos, certas e determinadas leis. Como um homem que sobe, ou quiçá desce a falda de uma montanha, assim ele se elevava ou se enterrava sem sair do mesmo sítio; pelo menos, em cada curva, um novo abismo se erguia, ora à direita, ora à esquerda. A ascenção só podia medir-se pelo ar que ia rareando e pelos diferentes cumes que apontavam por detrás daqueles que já pareciam haver ocultado o horizonte. Era, porém, falsa a noção de ascenção ou de descida: os astros tanto brilhavam em cima como em baixo; e ele tanto se achava no fundo do abismo como no centro. O abismo estava, ao mesmo tempo, para além da esfera celeste e no interior da cúpula óssea. Tudo parecia processar-se no extremo limite de uma série infinita de curvas fechadas.

marguerite yourcenar / a obra ao negro, segunda parte: a vida imóvel

2 comentários:

Anónimo disse...

Gostei do blog, convido a visitar este antro deveras interessante pelo simples facto, que lá na Arca, escrevem os mais prodigiosos inventores da escrita zoófila. Passe e comente...abraços bloguistas
e se gostar "link"

Carla de Elsinore disse...

espero que esta ausência blogosférica não queria dizer que ainda estão a arrumar a casa.